sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Intervir? Como proteger (salvar) nosso futebol?

Liberdade contratual no futebol em xeque
 
O Brasil tem por tradição intervir na vontade das pessoas, na sociedade em geral. É da nossa cultura mesmo. A liberdade é relativa em nosso país, nem tudo que se quer acordar (acertar em contrato), se pode e/ou tem validade (valor legal). No Estados Unidos, por exemplo, a contratação é bem mais livre do que aqui. Lá os contratos detém uma força muito maior se comparado ao “pacta sunt servanda” tupiniquim. Exemplo disso? O casamento! Enquanto lá um pacto antenupcial pode prever desde indenizações em exposições sem autorização do “noivo” na Internet (Redes Sociais), até reparações em dinheiro em casos de adultérios, por aqui esse documento se resume meramente a identificar o regime patrimonial do matrimônio. A regulamentação deste relacionamento é quase que estritamente pela Lei. Você escolhe o regime e se enquadra a ele, nada mais.
Temos também as constantes intervenções estatais com a desculpa de “equilibrar” ainda mais essas coisas. Cotas sociais/raciais, taxas de juros, tributos (isenção/redução deles), benefícios... ações governamentais que motivam ou desmotivam certas situações. Assim são nas relações comerciais, trabalhistas, de consumo, quase tudo.
Quase tudo! Porque nas convenções em contratos esportivos o caminho é inverso. Voltemos um pouco no tempo para entender isso melhor.
 
Futebol ostentação! Farra, mulheres e grana, MUITA grana
 
Desde a Lei Pelé (9.615/98) de 24 de março de 1998, o direito de “passe” dos atletas em favor dos Clubes foi extinto no Brasil. Algumas mudanças foram introduzidas no processo para justificar a formação dos jogadores de futebol. Podemos citar a janela de transferências, o direito de formador, cálculos de rescisão distintos (permitindo diferentes percentuais em relação às transferências internacionais e nacionais), por aí vai. Nada se mostrou eficiente e a Fifa acabou criando uma comissão para discutir a participação de investidores nos clubes de futebol (terceiras partes). Segundo Martín Fernandez “A primeira reunião do grupo acontece na semana que vem, em Zurique, e terá apresentações de especialistas nos mercados de Brasil, Portugal e Inglaterra. O caso brasileiro é considerado o mais problemático. Serão analisadas na Fifa as situações de três clubes de elite do futebol do Brasil. Cada um tem entre 45 e 60 jogadores profissionais registrado. E menos de 20% desses jogadores pertencem integralmente aos clubes” [01].
 
Joseph S. Blatter - presidente da FIFA
 
Como se observa na reportagem constatou-se que entre 80% e 90% dos jogadores do futebol no Brasil tem seus direitos divididos entre Clubes e investidores.
Outra matéria jornalística interessante foi a entrevista do Sr. Antenor Angeloni (homem forte do Criciúma), pronunciando uma série de manifestações que chama a atenção ao problema. Vejam alguns destaques:

Presidente, podemos garantir a permanência do Tigre na Série A em 2015? R.: Meu caro, se quisermos continuar tendo futebol precisamos ficar na Série A. Avai e Joinville têm que voltar logo.
A Série B não é um bom campeonato, presidente? R.: É uma desgraça. Financeiramente, digo.
E a ética no futebol, presidente.
Não existe mais? R.: Já sei, estás falando do técnico do Avaí. Deus me livre mandar tirar um profissional do Avaí ou qualquer outro clube.
O futebol está caro, presidente? R.: Olha, não há em Santa Catarina nenhum time capaz de se manter com os absurdos que estamos vendo. Se não houver uma mudança não sei como isso vai terminar.
E vai mudar? R.: Nada. Essas reuniões na CBF para tentar alguma coisa não dão em nada. Não vai mudar nada”. [02]
 
Antenor Angeloni
 
Por isso a Fifa (órgão supremo do futebol) deve tentar regulamentar esse mercado criando uma espécie de regulamento, algo novo a ser posto em prática sob pena de o esporte em países de economia mais fraca como a nossa se tornar impraticável.
O problema não reside unicamente no grupo de elite da bola. Os pequenos Clubes do Brasil sofrem ainda mais pelo movimento desta máquina que transformou o país em um exportador de jogadores altos, fortes e tecnicamente aplicados. Perdemos nossa identidade porque os times precisam da grana! Para formar zagueiros e volantes tão procurados pelo mercado externo, a metodologia mudou. Alto rendimento custa uma nota preta, formar “jogadores/cavalos” demanda muito mais ciência do que habilidade das comissões técnicas de base. Para sobreviver, paramos de garimpar craques para lapidar “caras grandes”.
 
O baixinho Romário teria chances em um peneirão de hoje?
 
Escolinhas de futebol são formadas sem o propósito de FAZER FUTEBOL e sim formar brucutus. O conceito de “inclusão social” (outra vertente) se espalha em ONG’s da bola parceiras do poder público e alguns ramos da iniciativa privada, mas não forma atletas porque o foco é outro. Tudo se transformou em um grande negócio. A idéia do “Rei do futebol” colaborou para o “caos” porque trabalhou a sua Lei voltada na proteção dos jogadores de alto padrão, exatamente como ele foi ao passado. O problema é que esta regra esqueceu-se de amparar aqueles 99,99% dos atletas profissionais de futebol que sofrem com essa realidade. O mesmo digo em relação aos times. O Bom Senso FC tem um discurso que visa defender esse grande grupo de jogadores desamparados por esta realidade (apesar de eu não acreditar seja este o verdadeiro propósito do movimento).
Sem a sua real identidade, nosso futebol está refém de um mercado financeiro cada vez mais avassalador. Enquanto os euros e os petrodólares são troco lá fora, aqui representam uma verdadeira fortuna. Como competir? Um contexto globalizado colocou os “desiguais” em par de “igualdade” nesta batalha desleal. Não há uma preocupação com os pequenos times em relação aos grandes (internamente falando) também. Destruímos o que tínhamos de melhor no esporte. Dezesseis anos de Lei Pelé, toda falta de sensibilidade dos homens forte do futebol neste período mudaram radicalmente as coisas por aqui.
 
Qual o verdadeiro interesse da CBF? A condução do trabalho está correta?
 
Antes tudo era muito amador (é verdade), mas a evolução para um profissionalismo muito caro transformou esse negócio em algo indecente, inoperante e inaplicável na realidade (condições) dos Clubes do nosso país.
Venho batendo nesta tecla desde a criação do Blog há quase quatro anos atrás. Tornou-se inviável fazer futebol. Fabricar jogadores “tipo laboratório” virou um baita negócio. Nutricionistas, fisiologistas, preparadores físicos e tantos outros profissionais desta ordem não fazem mais um trabalho secundário, eles se tornaram fundamentais. Peneiras, seleções e todo processo de ingresso da garotada nas categorias de base estão sendo feitas em observância ao tamanho do candidato, porque a técnica virou artigo de segunda linha. Futebol é algo que se ensina? Nos treinos esses meninos não podem dar um drible sequer. Acabou a molecagem, não pode inventar. Até porque a maioria que estão lá nem tem condições de fazer isso. Robôs de resultado! “Força, foco e fé”.
Precisa a Fifa vir lá de fora dar um jeito nesta balbúrdia? Até pra eles se tornou vexatório a surra de 7 x 1 que sofremos dentro do campo, bem como esta outra surra que tomamos todos os dias nos bastidores da bola.

Saudações Coloradas
 
[01] FERNANDEZ, Martín. Pelo menos 80% dos jogadores brasileiros estão fatiados entre clubes e investidores. Portal Globo.com – Bastidores F.C. <disponível em http://globoesporte.globo.com/blogs/especial-blog/bastidores-fc/post/pelo-menos-80-dos-jogadores-brasileiros-estao-fatiados-entre-clubes-e-investidores.html>, acesso em 25/08/14
[02] Presidente Angeloni, do Criciúma: "A Série B é uma desgraça e os técnicos ficaram loucos". Portal ClicRBS – Diário Catarinense <disponível em http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/esportes/noticia/2014/08/presidente-angeloni-do-criciuma-a-serie-b-e-uma-desgraca-e-os-tecnicos-ficaram-loucos-4585363.html>, acesso em 25/08/14

Imagens: Site Janete a Estranha, Blog 98 Curitiba, Globo.com, Blog Nó Tático e Esportes R7

3 comentários:

  1. Verdade, Rafael!
    E se analisarmos com calma, veremos que iniciou essa mudança de mentalidade após a Copa de 70. A qual o Brasil ganhou com um pé nas costas, pois deu um banho de técnica e principalmente de preparo físico! Ainda naquela década, ganhou muito destaque pelas mãos de Rubens Minelli que montou um time vencedor e quase imbatível, onde não tinha um jogador (que já eram atletas) com menos de 1,80 m de altura. Acabou o espaço para "jogadores de bola" ou "boleiros" da fase romântica do futebol.
    Hoje os atletas tem quase todos (salvo raríssimas exceções) a mesma formação, até o jeito de bater na bola é padrão. Tudo visando sua colocação no mercado internacional, e o retorno financeiro é prioridade não importa se vai ser um grande jogador ou não, tem que vender o"produto" cedo e faturar.

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  2. Muito interessante os pontos ilustrados pelo Rafael, mas não sei se a ideia de crise, de terra do atraso e do arraso, não é um pouco de exagero.
    Será que os atrasos nos salários de jogadores não aconteceram no passado?
    As manifestações e protestos dos atletas com salários, a meu ver, parece muito mais uma questão de atitude, de consciência de seus direitos, do que pensar que vivemos a pior crise da história.
    Não acredito que no passado, quando a economia do Brasil estava pior que hoje, os atletas profissionais não tinham problemas. O que mudou foi a postura, agora eles resolveram lutar por seus objetivos.
    Não creio que o 7 a 1 da Alemanha foi o reflexo de nossas mazelas sociais, políticas e econômicas. No meu ponto de vista, foi um acaso, um detalhe do futebol.
    O Brasil já viveu piores crises políticas, econômicas, e já foi brilhante na bola, a Copa 70 é o exemplo.
    O Brasil de 2014 era fraco, deu um vacilo de 5 minutos, e tomou uma goleada. A Alemanha nunca mais vai ganhar um campeonato dessa maneira.

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  3. Marcão e FJC, deixem me explicar melhor. Dois aspectos históricos precisam ser levantados. O primeiro deles é o técnico. Em 4 Copas ganhamos 3, bem observado pelo Marcão. O mundo criou a idéia de o Brasil ser o país do futebol, fama que carregados até hoje. Pelé é e sempre será o maior jogador de todos os tempos porque tecnicamente fazia tudo (cabeça, falta, drible, velocidade, etc.) mas com o preparo de hoje. Um cara 30, 40 anos frente ao seu tempo. Mas o resto não! Gerson fumava um cigarro nos intervalos, por exemplo (diz a lenda). Se destacavam pela qualidade, não a força. Em 74 isso começou mudar com o carrossel holandês. 24 anos passamos os mundiais acreditando que nossa qualidade ganharia sozinha. Em 94, depois de tanto apanhar com um mundo de craques eternidade por uma genialidade não premiada com a Copa do Mundo, conseguimos um time sólido porque mudou o conceito. Mas além da aplicação tática, tínhamos qualidade. 3 finais seguidas, 2 títulos. A partir de 2002 ganhamos Copa América, Confederações, fizemos final olímpica, enfim. Mas no Mundial não rendeu e a nossa qualidade diminuiu. É fato! Evoluimos por necessidade, mas perdemos a identidade por necessidade também. Os motivos expliquei no texto. O segundo aspecto é o histórico administrativo. Bem lembrado por FJC, entendo que evoluímos. No passado não havia salários, apenas bichos e premiações, além das luvas. A coisa foi mudando, mas o futebol brasileiro ficou desprotegido. Essas coisas ainda existem como estímulos, motivação. Entretanto o contrato mudou de socio-atleta para profissional. Sem o passe, os Clubes ficaram na mão de agentes. O caso R. Gaúcho que deixou o Grêmio sem deixar um centavo no caixa exemplifica o despreparo dos dirigentes para lidar com a nova realidade que chegava. Os times ainda estão se adaptando, mas brigando sem condições de igualdade com gente muito mais preparada e rica que a gente. Os Clubes não vivem, sobrevivem! Para sustentar um grupo mediano fazem um esforço gigantesco. Exceto o Cruzeiro (que também não é a sétima maravilha do mundo senão teria sido campeão da Libertadores com os pés nas costas), a Série A tem 19 times limitadissimos, equilibrado em vários sentidos. O lanterna pode vencer um integrante de G-4 sem tanta surpresas. Se houvesse um sistema preocupado com a produção, permitindo aos Clubes um poder maior sobre o que revelam, valeria a pena abrir um pouco a mão de fabricar tantos brucutus pro mercado externo. Para fechar as contas, o Brasil precisa vender jogadores. A conta é muito alta.

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